Desde os tempos primitivos, a humanidade busca formas para compreender a consciência, mente e cognição e as características que nos diferenciam dos demais animais. De acordo com Ekuni, Zeggio e Bueno (2015), com o avanço da tecnologia tornou-se possível um maior aprofundamento nas pesquisas sobre o cérebro, permitindo um conhecimento mais detalhado sobre seu funcionamento, que atualmente é associado à inteligência, cognição e aprendizado. No entanto, apesar dos avanços científicos, uma ideia distorcida tem sido amplamente disseminada: seria verdade que os seres humanos utilizam apenas uma pequena porcentagem de sua capacidade cognitiva?
Esse é um dos “neuromitos” (crenças infundadas sobre o funcionamento cerebral) mais populares, levando muitas pessoas a acreditarem que há um potencial oculto esperando para ser desbloqueado. Na sociedade atual, onde produtividade e diferenciação são cada vez mais exigidas, a busca pelo aprimoramento da capacidade cognitiva tornou-se um objetivo. Nesse contexto, surgem promessas de métodos e substâncias que alegam aumentar o potencial cognitivo e permitir o uso total da capacidade cerebral. Porém, muitas dessas alegações são baseadas em pseudociências e interpretações equivocadas de conceitos, sem qualquer embasamento científico.
Com o avanço da neurociência, especialmente no diagnóstico e tratamento de doenças neurológicas, informações científicas complexas ao serem popularizadas pela mídia frequentemente sofrem distorções, intencionais ou não, e simplificações equivocadas. Esse fenômeno contribui para a perpetuação de neuromitos que acabam influenciando a educação, a saúde e até mesmo o avanço da neurociência.
Diante desse contexto, esse artigo tem como objetivo analisar criticamente o neuromito de que os seres humanos utilizam apenas uma porcentagem do cérebro, investigando sua origem, os fatores que contribuem para sua disseminação e os impactos dessa crença para as ciências e sociedade.
À medida que as tecnologias das pesquisas neurobiológicas avançam, os chamados "neuromitos" ganham espaço entre a população que deseja cada vez mais conhecer o funcionamento do cérebro. São considerados neuromitos “a divulgação e interpretação equivocadas de pesquisas relacionadas à ciência do cérebro” (EKUNI, ZEGGIO, BUENO, 2015).
Em síntese, a incidência destes neuromitos se dá pela incompreensão das diferentes implicações de estudos realizados em animais em relação aos seres humanos. De acordo com Ekuni, Zeggio e Bueno há diferentes tipos de neuromitos – alguns se parecem mais como exacerbação de uma origem verdadeira e outros são informações totalmente erradas. Embora exista um imenso acúmulo de pesquisas científicas relacionadas ao cérebro, muito de seu funcionamento ainda é um campo a ser estudado, fator que contribui para a disseminação de informações falaciosas.
Podemos destacar que por trás deste fenômeno de desinformação há alguns interesses para além da ciência, como interesse comercial (venda de suplementos, treinamentos para turbinar a mente, por exemplo) e midiático (tal como os filmes Sem Limites e Lucy que retratam o uso de fármacos ou drogas para atingir um “potencial sobre-humano”). Os autores Ekuni, Zeggio e Bueno (2015) citam que pessoas familiarizadas com estudos científicos tem menores chances de serem enganadas do que as pessoas leigas. Contudo, artifícios de marketing são usados para aliciar mais engajamento:
A população em geral pode ser facilmente suscetível a afirmações ou produtos que usem uma explicação irrelevante, mas que contenham as palavras “cérebro”, “neurociências”, o prefixo “neuro” ou qualquer outro correlato (EKUNI, ZEGGIO, BUENO, 2015, p. 81).
Antes da divulgação de dados científicos, um estudo com experimentação científica deve passar por uma série de etapas como a elaboração de hipóteses e detalhamento preciso dos métodos a serem utilizados, e estudos independentes - cujo pesquisador(a) não tenha conflitos de interesse com os resultados da pesquisa, entre outros. Isto quer dizer, uma pesquisa científica deve seguir e demonstrar critérios rigorosos que a levaram à conclusão. Nesse contexto, a mídia pode também ser uma aliada quando há preocupação e busca por conteúdos que promovam o conhecimento científico, diminuindo a proliferação de informações míticas e os riscos que tais erros proporcionam.
Entre tantos neuromitos existentes, aquele que diz que usamos apenas 10% de toda capacidade do nosso cérebro, é o objeto deste estudo.
A crença de que haveria 90% de capacidade cerebral a ser explorada, vem junto com a possibilidade de adquirir habilidades extraordinárias e paranormais - o que pode fomentar mais esta crença fictícia. No entanto, de acordo com os autores:
Podemos sim atingir níveis excepcionais de aproveitamento em diversas tarefas, não por usarmos novas áreas cerebrais que não eram usadas anteriormente, mas sim por melhorar o uso de áreas específicas para determinada tarefa através de treinamento (EKUNI, ZEGGIO, BUENO, 2017, p. 39).
Cientistas entraram em acordo que os seres humanos utilizam 100% da capacidade do cérebro em vinte e quatro horas. Exemplo disso é quando estamos dormindo – o corpo se mantém em repouso enquanto as funções cerebrais estão em plena função, podendo em alguns momentos apresentar uma atividade mais intensa do que quando estamos acordados (EKUNI, ZEGGIO, BUENO, 2015). A primeira descoberta sobre a atividade elétrica do cérebro vem de 1929 com estudo do médico Hans Berger, após este período os estudos sobre a atividade cerebral durante o sono foram – e continuam – se consolidando.
Ainda que a ciência não tenha absoluto entendimento sobre o cérebro, os estudos continuam e há grandes avanços. Atualmente, nas neurociências, existem técnicas que permitem a visualização e medição da atividade cerebral e comprovam que o uso parcial do cérebro é um mito, como o exame PET (tomografia por emissão de pósitrons) e fMRI (ressonância magnética funcional) demonstram a atividade cerebral completa, evidentemente que existem regiões que podem estar mais ou menos ativas, mas conforme estudo publicado em 2008 na revista Scientifc American por Barry Gordon: “usamos praticamente todas as partes do cérebro, e que a maior parte do cérebro está ativo quase o tempo todo” (EKUNI, ZEGGIO, BUENO, 2017). Anatomicamente, a interconectividade do cérebro passa por uma ponte chamada o corpo caloso, o qual possui “cerca de 200 milhões de axônios que cruzam de um hemisfério a outro” sendo maior responsável pela comunicação entre os hemisférios direito e esquerdo (BEAR, CONNORS, PARADISO, 2017).
Caso existisse uma área no cérebro não utilizada, uma lesão na massa encefálica, mesmo considerada de pequena proporção, poderia não ter efeitos – situação que não ocorre na realidade. Os estudos mostram que lesões neurológicas como acidentes vasculares, dentre outros, podem ocasionar grandes danos neurológicos independentemente do local da ocorrência, justamente porque usamos a maior capacidade cerebral.
Nosso cérebro tem a capacidade de mudar e se adaptar funcional e estruturalmente, através do processo chamado plasticidade ou neuroplasticidade (CHAVES, 2023) ou seja, as regiões do cérebro que não são utilizadas tendem a diminuir ou serem reorganizadas por este processo.
Sabe-se, através do conceito de “apoptose”, que neurônios sem interação com outras células morrem – mais uma evidência que demonstra que utilizamos 100% da nossa capacidade cerebral – caso contrário, haveria a degeneração de 90% do cérebro que não corresponde aos resultados de autópsias que mostram “um cérebro denso e compacto em indivíduos saudáveis” (EKUNI, ZEGGIO, BUENO, 2015).
Com a apresentação destas evidências retomamos ao tema inicial com a constatação de que o argumento que usamos apenas 10% do cérebro – e que haveriam partes a serem exploradas – é mito.
A completude e complexidade que envolvem o funcionamento deste órgão, tem um vasto campo a ser explorado, no entanto, dos consensos existentes, e verdades que podem ser difundidas, temos dentro do pleno funcionamento (no sentido de uso total das capacidades) a neuroplasticidade, conforme Gazzaniga (2018) define, torna o cérebro adaptável, apto a mudanças por aquisição de experiências ou em decorrência de lesões.
A análise crítica das origens dos neuromitos e os motivos pelos quais eles são impulsionados, revela que eles partem de meias-verdades ou mentiras absolutas. Dizer que utilizamos apenas 10% do nosso cérebro vem de uma interpretação equivocada de estudos antigos e demonstra desatualização quanto às evidências científicas atuais.
O funcionamento cerebral é complexo, e embora ainda haja muito a ser descoberto, estudos avançados de imagens e investigações em neurociência demonstram que praticamente todas as áreas do cérebro apresentam atividade, ainda que de forma diferenciada conforme as demandas cognitivas e comportamentais.
A persistência desse mito pode ser atribuída a interpretações equivocadas de dados científicos, à propagação acrítica pela mídia e a interesses comerciais que se beneficiam da desinformação. Nesse contexto, torna-se imprescindível fomentar a educação científica e o pensamento crítico, visando não apenas combater a difusão de conceitos infundados, mas também promover uma compreensão mais acurada do funcionamento cerebral e de seus desdobramentos para a sociedade contemporânea.
Obrigada por ler até aqui! Um beijo em seu sistema límbico ♥︎
Referências
BEAR, M. F.; CONNORS, B. W.; PARADISO, M. A. Neurociência: desvendando o sistema nervoso. 4. ed. Porto Alegre: Artmed, 2017.
CHAVES, José Mário. Neuroplasticidade, memória e aprendizagem: uma relação atemporal. Revista Psicopedagogia, São Paulo, v. 40, n. 121, p. 66-75, abr. 2023.
EKUNI, Roberta; ZEGGIO, Larissa; BUENO, Orlando Francisco Amodeo. Caçadores de neuromitos: o que você sabe sobre? 2. ed. São Paulo: Memnon, 2017.
EKUNI, Roberta; ZEGGIO, Larissa; BUENO, Orlando Francisco Amodeo. Caçadores de neuromitos: o que você sabe sobre? São Paulo: Memnon, 2015.
GAZZANIGA, M.; HEATHERTON, T.; HALPERN, D. Ciência psicológica. 5. ed. Porto Alegre: Artmed, 2018.
Nunca tive meu sistema límbico beijado antes, obrigado
Sensacional!!! Meus Parabens pelo artigo!!!