O quanto o uso constante de telas afeta na saúde mental de crianças?
Escrito por Carla Kanashiro
1. INTRODUÇÃO
Vivemos em uma era digital na qual a presença de dispositivos eletrônicos é praticamente constante no cotidiano das crianças. Segundo Santos et al. (2024), as tecnologias de informação e comunicação (TICs) que são definidas como o conjunto de tecnologias que permitem a produção, o acesso e a disseminação de informação e comunicação entre as pessoas, fazem cada vez mais parte do nosso dia a dia. O uso dessas tornou-se comum desde os primeiros anos de vida, sendo utilizado para entretenimento, aprendizado e até como ferramenta de controle comportamental por pais e cuidadores. No entanto, esse uso frequente tem gerado preocupações sobre possíveis prejuízos à saúde mental e ao desenvolvimento emocional e cognitivo na infância.
A Organização Mundial da Saúde (OMS) recomenda que crianças de até cinco anos de idade não devam passar mais de 60 minutos por dia em atividades passivas diante de uma tela de smartphone, computador ou televisão (TV), enfatizando que bebês com menos de 12 meses de vida não devam passar nem um minuto na frente de dispositivos eletrônicos. Porém, dados de diversas pesquisas apontam que essa orientação raramente é seguida, sendo comum o uso diário ultrapassar em até 3horas/dia (LI et al., 2020). Essa superexposição tem sido associada a prejuízos no sono, aumento de sintomas de ansiedade, dificuldades de atenção e problemas de comportamento (MUPPALLA et al., 2023).
Diante desse cenário, torna-se urgente compreender os efeitos do uso excessivo das tecnologias digitais na saúde mental e no desenvolvimento neurológico de crianças. Este artigo tem como objetivo revisar as evidências científicas disponíveis sobre os impactos psicológicos, cognitivos e fisiológicos do tempo excessivo de tela na infância.
2. DESENVOLVIMENTO
2.1 Desenvolvimento Cognitivo e Acadêmico
O tempo excessivo diante das telas pode comprometer funções cognitivas essenciais para o desempenho escolar, como a atenção, a memória de trabalho e a capacidade de resolução de problemas. Muppalla et al. (2023) alertam que o uso prolongado de dispositivos digitais está associado a menor rendimento escolar, pior desempenho em matemática e leitura e atraso em habilidades executivas como inibição e alternância de tarefas.
Estudo longitudinal conduzido no Canadá demonstrou que cada hora adicional de exposição à TV aos dois anos de idade está associada a uma redução de 7% na participação escolar e de 6% no desempenho em matemática no quarto ano do ensino fundamental (MUPPALLA et al., 2023).
2.2 Saúde Emocional e Social
Durante a infância, as crianças estão em pleno desenvolvimento de habilidades socioemocionais, como empatia, autocontrole e regulação emocional. A literatura indica que o uso descontrolado de telas, especialmente para jogos eletrônicos e redes sociais, pode estar ligado ao aumento da agressividade, à dificuldade de interpretar emoções e à redução de comportamentos pró-sociais (LI et al., 2020).
De acordo com os achados de Santos et al. (2024), crianças que passam muito tempo em frente às telas tendem a apresentar maior incidência de sintomas depressivos, irritabilidade, insônia e isolamento social, além de menor capacidade de lidar com frustrações e dificuldades cotidianas.
2.3 Sono e Bem-Estar Físico
Outro aspecto bastante afetado pelo uso contínuo de telas é o sono. A luz azul emitida pelos dispositivos inibe a produção de melatonina, hormônio responsável pela regulação do ciclo sono-vigília. A meta-análise conduzida por Li et al. (2020) evidenciou que crianças com tempo de tela superior a uma hora por dia apresentaram risco 2,2 vezes maior de ter sono reduzido ou de baixa qualidade.
O déficit de sono, por sua vez, afeta diretamente o humor, a atenção e a capacidade de aprendizado, criando um ciclo negativo de desempenho acadêmico e sofrimento psicológico.
2.4 Fatores de Moderação
O impacto das telas depende não apenas da quantidade de tempo, mas também do conteúdo consumido, da idade de início e do contexto em que o uso ocorre. O uso supervisionado, com conteúdos educativos e acompanhados por adultos, pode atenuar os efeitos negativos e até promover o desenvolvimento, como indicam estudos com aplicativos de leitura e vídeos educativos (MUPPALLA et al., 2023).
2.5 Alterações Neurofisiológicas Causadas pelo Uso Excessivo dos TICs
A neurociência tem demonstrado que o uso excessivo de telas durante a infância pode acarretar alterações significativas na estrutura e no funcionamento do cérebro (Ferreira et al., 2023). Além disso, Hutton et al. (2022) encontraram associações entre maior uso de mídia digital e menor espessura cortical e profundidade sulcal em áreas cerebrais que dão suporte ao processamento visual primário e funções de ordem superior, como atenção de cima para baixo, codificação complexa de memória, reconhecimento de letras e cognição social.
2.6 Efeitos da Exposição Precoce aos TICs e do Contexto Familiar
Supanitayanon et al. (2020) investigaram longitudinalmente os efeitos do uso precoce de telas em crianças até os 4 anos de idade, com ênfase na linguagem e no desenvolvimento cognitivo. Os autores demonstraram que crianças com mais de 6 horas diárias de tela e baixa interação verbal com os cuidadores apresentaram escores significativamente mais baixos em linguagem receptiva, atenção e habilidades motoras finas.
Embora o estudo de Supanitayanon et al. (2020) tenha se concentrado nos primeiros anos de vida, seus achados sobre os efeitos cumulativos da exposição precoce a telas oferecem subsídios relevantes para a compreensão de impactos que podem persistir ou se intensificar ao longo de toda a infância.
3. CONCLUSÃO
A exposição prolongada e não supervisionada aos TICs têm efeitos multifacetados sobre o desenvolvimento infantil, afetando desde aspectos emocionais e sociais até funções cognitivas e estruturais do cérebro. Os estudos revisados demonstram não apenas os impactos comportamentais, como aumento da ansiedade e prejuízos no sono, mas também alterações fisiológicas no cérebro em desenvolvimento, com redução de substância cinzenta, disfunções dopaminérgicas e atraso na formação de habilidades linguísticas e motoras.
Além disso, o estudo de Supanitayanon et al. (2020) revelou que o contexto familiar e o estilo parental influenciam diretamente o grau de impacto dessa exposição, o que ressalta a importância de ações preventivas integradas. Tais ações incluem orientação aos pais sobre o uso consciente das tecnologias, estímulo a interações presenciais significativas, educação digital nas escolas e vigilância ativa por profissionais da saúde. Somente por meio da integração entre família, escola, profissionais e políticas públicas será possível proteger o desenvolvimento emocional e neurobiológico das crianças em tempos digitais.
Ações preventivas integradas e contínuas aumentam a eficácia da prevenção, promovem o uso saudável das tecnologias e protegem o cérebro em desenvolvimento da criança.
1. Família
- Estabelecimento de limites de tempo de tela: aplicar as recomendações da OMS (por exemplo, no máximo 1h/dia para crianças).
- Supervisão ativa: acompanhar o conteúdo consumido e dialogar sobre ele.
- Promoção de brincadeiras off-line: estimular jogos criativos, leitura, atividades físicas e brincadeiras ao ar livre.
- Interação verbal durante o uso de telas: comentar, explicar e conversar sobre o que a criança está assistindo.
2. Escola
- Educação digital: ensinar desde cedo o uso consciente da tecnologia.
- Aulas interativas sem depender de telas: priorizar atividades manuais, cooperação em grupo e resolução de problemas.
- Formação de professores: capacitar educadores para identificar sinais de impacto emocional e cognitivo causado pelo uso excessivo de telas.
3. Profissionais da saúde (atenção primária e especializada)
- Orientações nas consultas de puericultura e hebiatra: avaliar e aconselhar sobre o tempo de tela com base em evidências científicas.
- Triagem precoce de alterações cognitivas e comportamentais: usar instrumentos de avaliação para identificar atrasos ou sintomas associados à exposição digital excessiva.
- Encaminhamento para intervenções multiprofissionais: psicologia, neurologia, fonoaudiologia, psicopedagogia.
4. Políticas públicas e campanhas
- Campanhas educativas nas mídias e escolas sobre os riscos do uso excessivo de telas.
- Regulação de conteúdo publicitário digital direcionado às crianças.
- Apoio à parentalidade: criação de espaços e programas que promovam o fortalecimento do vínculo familiar.
5. Mídia e tecnologia
- Criação de conteúdos educativos e interativos voltados ao desenvolvimento infantil.
- Aplicativos com tempo de uso limitado e controle parental.
- Alertas em plataformas digitais sobre tempo de exposição e recomendações de pausas.
Obrigada por ler até aqui! Um beijo em seu sistema límbico ♥︎
REFERÊNCIAS
FERREIRA, Ana Paula et al. O impacto negativo do tempo de telas em crianças: uma revisão sistemática. Revista Saúde Digital, v. 9, n. 1, 2023.
HUTTON, John S et al. Associations between digital media use and brain surface structural measures in preschool-aged children. Scientific reports vol. 12,1 19095. 9 Nov. 2022.
LI, C. et al. The relationships between screen use and health indicators among infants, toddlers, and preschoolers: a meta-analysis and systematic review. International Journal of Environmental Research and Public Health, v. 17, n. 19, p. 7324, 2020.
MUPPALLA, S. K. et al. Effects of excessive screen time on child development: an updated review and strategies for management. Cureus, v. 15, n. 6, p. e40608, 2023.
ORGANIZAÇÃO MUNDIAL DA SAÚDE. Orientação sobre o uso de telas digitais na infância. Genebra: OMS, 2019.
SANTOS, V.V.S. et al. Uso de telas e os perigos à saúde mental de crianças e adolescentes: revisão integrativa. Revista Recien, v. 14, n. 42, p. 169–184, 2024.
SUPANITAYANON, Sudarat; TRAIRATVORAKUL, Pon; CHONCHAIYA, Weerasak. Screen media exposure in the first 2 years of life and preschool cognitive development: a longitudinal study. Pediatric Research, v. 89, 2020.
Esse assunto é extremamente importante. É o tipo de conteúdo que precisa chegar aos pais. A geração atual perdeu o maior brilho de ser criança, e vão se tornando adolescentes, jovens sem fundamentos e alienados pelo vídeos curtos.
Muito pertinente a leitura!